Sem alarde e aguardando aval da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) para ser votada em plenário, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 10/22 que, na prática, autoriza a comercialização de sangue no país, tramita no Senado Federal. A proposta de emenda altera o parágrafo 4º do artigo 199 da Constituição.
O texto da PEC estabelece que “a lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização”.
A Constituição Federal de 1988 proibiu que sangue virasse um produto negociado no mercado, encerrando um ciclo vivenciado pelo país nas duas décadas anteriores. Se aprovada, a nova emenda fará com que o sistema retorne ao que era antes da Constituição, quando existiam bancos de sangue que compravam doações feitas no país.
Isso pode ocorrer porque, embora o texto ressalte ser “vedado todo tipo de comercialização” de sangue e seus derivados, a PEC, caso aprovada, permitirá que iniciativa privada colete e processe o plasma humano, o que daria margem para a compra do “produto”.
A PEC é de autoria do senador Nelsinho Trad (PSD-MS) e relatada por Daniella Ribeiro (PSD-PB), que já apresentou um parecer favorável à medida. O texto aguarda ser pautado na CCJ do Senado e, se aprovado, seguirá para o crivo dos senadores em plenário.
Contrário
Durante a semana, o senador Humberto Costa (PT-PE) se manifestou contra a progressão do documento no Congresso. Ao Metrópoles, ele avaliou que, caso avance, a PEC será um “retrocesso”. Costa foi o criador da Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás), em 2004, no período em que foi ministro da Saúde do primeiro governo Lula.
“Essa PEC deveria ser retirada de tramitação. Ela, na prática, institui um comércio de sangue no país, que a Constituição de 88 vedou. Nós temos a Hemobrás, que tive a honra de criar em 2004, como ministro da Saúde de Lula, e que deve estar concluída em outubro. Ela [Hemobrás] terá capacidade de processar 500 mil litros de plasma por ano e assegurar o atendimento a todos os pacientes do SUS. Muito dinheiro já foi investido lá. Ela é estratégica para o Brasil e nós precisamos agir para concluí-la. E não abrir um balcão de mercado para negociar plasma em prejuízo dos interesses do Estado brasileiro e do seu povo”, disse.
“A Hemobrás é estratégica. Não pode ser esvaziada. Está quase pronta. Muito foi investido nela. Não precisamos de comercialização de sangue, prática proibida pela nossa Constituição. Do que precisamos é reforçar a empresa para que sejamos autossuficientes no setor e possamos abastecer o SUS, em benefício de todo o povo brasileiro, longe de transformar a hemorrede em um balcão de mercado”, disse o senador.
Atualmente, o Brasil ainda descarta o excedente do plasma, parte líquida do sangue. O autor da emenda, Nelsinho Trad, argumenta que a PEC tem por objetivo “tornar o Brasil mais independente” e evitar o desperdício.
“A PEC tem como objetivo tornar o Brasil mais independente na produção de medicamentos feitos a partir do plasma humano. Também evitar o desperdício de mais de 500 mil litros de plasma (o equivalente ao material coletado em mais de 2 milhões de doações de sangue), devido à falta de uma lei mais atualizada. Recentemente, o Tribunal de Contas da União e o Ministério Público divulgaram esses dados preocupantes”, justifica.
Ainda segundo ele, instituições públicas e privadas em países como Alemanha, Áustria, República Tcheca, Hungria e Estados Unidos demonstraram que “é possível reverter essa situação com segurança e que o Brasil pode se tornar uma referência para outros países nesse assunto”, disse.
Entidades contra a PEC
Ao presidente do Senado e do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), entidades encaminharam um documento no qual se posicionam de forma contrária à PEC 10/2022.
A Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH) divulgou seu posicionamento a respeito da proposta: “Sobre a doação remunerada de plasma para fins industriais, a ABHH neste momento emite posição contrária. Entendemos que o excedente atual de plasma proveniente de doação voluntária de sangue não é devidamente aproveitado, corroborando para a não liberação desta prática no Brasil”.
O Conass, Conselho Nacional de Secretários de Saúde, também saiu em defesa da Hemobrás e se posicionou contra à emenda.
“Se aprovada, esta PEC 10/2022 poderá provocar uma grande concorrência pelo plasma brasileiro e inviabilizar a Hemobrás, que se encontra em fase final de conclusão da fábrica de hemoderivados e inaugura a fábrica de Fator VIII recombinante já em agosto de 2023. Como já mencionamos, mesmo antes do seu término a empresa já capta plasma e envia para o exterior para ser fracionado, voltando na forma de hemoderivados para o SUS. E o grande gargalo hoje para o seu pleno funcionamento é justamente a falta de plasma industrial no Brasil”, alega a nota divulgada.
O que a Constituição diz:
A Constituição Federal de 1988 discorre sobre a Política Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados e institui os seguintes princípios e diretrizes:
I – universalização do atendimento à população;
II – utilização exclusiva da doação voluntária, não remunerada, do sangue, cabendo ao poder público estimulá-la como ato relevante de solidariedade humana e compromisso social;
III – proibição de remuneração ao doador pela doação de sangue;
IV – proibição da comercialização da coleta, processamento, estocagem, distribuição e transfusão do sangue, componentes e hemoderivados; e
V – permissão de remuneração dos custos dos insumos, reagentes, materiais descartáveis e da mão de obra especializada, inclusive honorários médicos, na forma do regulamento desta Lei e das Normas Técnicas do Ministério da Saúde(…)”.
Por Metrópoles