Na esteira dos atos de 8 de janeiro, mais de 1000 manifestantes foram presos pela Polícia Federal, a Procuradoria-Geral da República já denunciou criminalmente 835 deles e o Supremo Tribunal Federal tem investigações em andamento para apurar a relação de políticos com os ataques aos três poderes. Outra frente de trabalho sobre os atos surgiu no Congresso, por meio de pedidos de criação de Comissão Parlamentar de Inquérito. Há duas iniciativas em curso: um requerimento no Senado de Soraya Thronicke (União-MS) e uma articulação feita pelo deputado bolsonarista André Fernandes (PL-CE) para criar uma CPMI, comissão mista de deputados e senadores.
No Palácio do Planalto, no entanto, essa possibilidade não é bem-vista, pois pode servir como palanque para a oposição jogar holofotes sobre eventuais erros de ministros como Flávio Dino, da Justiça, e José Múcio, da Defesa, na tarefa de proteger as instituições e o patrimônio público. Temendo possíveis desgastes, o presidente Lula não quer nem ouvir falar do assunto. Tanto ele quanto Dino já rechaçaram a ideia. Como só o discurso não bastou, o governo e sua base de apoio no Congresso intensificaram movimentos para tentar barrar essas CPIs.
Por enquanto, o ataque parece estar sendo mais eficaz no Senado, onde nasceu a primeira proposta de CPI. Ela é encabeçada por Soraya e parecia ter um futuro promissor. Apresentada em janeiro, poucas horas após os atos de depredação em Brasília, o requerimento reuniu assinaturas de 38 senadores em mandato (são necessárias 27), além de doze que deixaram o Senado em fevereiro, com o início da nova legislatura. Em entrevista, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), chegou a dizer que havia “fato determinado, de magnitude e importância, e assinaturas suficientes”, motivo pelo qual não lhe restaria alternativa que não ler o pedido de CPI, ato que abre caminho para sua instauração.
A maioria das assinaturas, no entanto, foi feita por senadores de partidos da base aliada do governo na Casa. A maior parte desses parlamentares, agora, diz não apoiar mais a criação da CPI, usando um argumento coincidente com o do governo Lula: as investigações têm andado a contento no STF, na PGR e na PF e que não haveria necessidade de “duplicar” as apurações. “A assinatura foi feita no ‘sangue quente’ ”, justifica o senador Otto Alencar (BA), lulista que lidera a bancada do PSD, a maior do Senado, com dezesseis membros. Ele assinou o requerimento de Soraya Thronicke, mas pode voltar atrás. Por outro lado, alguns governistas não cravam a retirada de apoio à Comissão.
O movimento de abafa ao requerimento de Soraya pode ser favorecido por uma questão burocrática: há um entendimento da Secretaria-Geral da Mesa do Senado no sentido de que o pedido da senadora, apresentado ainda na legislatura anterior, antes de fevereiro, ficou prejudicado, assim como as assinaturas que apoiam a iniciativa. “Deve-se ou abrir prazo para que se retirem assinaturas ou iniciar uma nova coleta de apoios”, diz o líder do PT no Senado, Fabiano Contarato (ES), que também assinou a criação da CPI “no calor do momento”. Soraya se defende citando um artigo do regimento do Senado para argumentar que o requerimento elaborado por ela, assim como as assinaturas de seus colegas, permanecem válidos. A senadora também diz ter a palavra de Rodrigo Pacheco de que ele leria o pedido de criação da CPI na próxima sessão deliberativa, prevista para o dia 28 de fevereiro, depois do Carnaval. “Quando protocolei o requerimento, o único senador com quem conversei foi o presidente”, diz ela. Já não confiando mais na promessa, Soraya acionou no último dia 16 o STF por Pacheco ainda não ter instaurado a CPI e classificou o comportamento dele como “atuação política antidemocrática” e “omissão”. Ela pede que o Supremo ordene a abertura da comissão de inquérito. A Corte não tem prazo para analisar o pedido.
Enquanto a tentativa de CPI no Senado está em xeque, a proposta de CPMI articulada pelo deputado André Fernandes tem tido avanços. A proposta é de incluir na apuração supostos atos de omissão do governo Lula durante as invasões do 8 de janeiro. Fernandes reuniu até o momento 32 assinaturas no Senado, mais que as 27 suficientes, e na Câmara obteve 168 apoios — são necessárias 171 assinaturas de deputados. “Deve-se buscar apurar, principalmente, se as autoridades do novo governo receberam os informes de inteligência e por que não foram reforçadas as medidas de segurança”, diz o senador e ex-vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos-RS), um dos apoiadores da CPMI. Além de Mourão, engrossam no Senado os apoios à iniciativa pesos-pesados do bolsonarismo como Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e os ex-ministros Rogério Marinho (PL-RN), Ciro Nogueira (PP-PI), Damares Alves (Republicanos-DF) e Tereza Cristina (PP-MS). Entre os deputados, nomes como Eduardo Bolsonaro (PL-SP), Eduardo Pazuello (PL-RJ), Nikolas Ferreira (PL-MG), Bia Kicis (PL-DF) e Carla Zambelli (PL-SP) também querem a CPMI. Ironicamente, o próprio André Fernandes é investigado no Supremo por ter insuflado os atos de janeiro. Ele chegou a ironizar nas redes sociais a invasão do STF, postando uma foto da porta de um armário vandalizado na Corte, com o nome do ministro Alexandre de Moraes.
Escaldado por escândalos do passado que respingaram nos governos petistas, tendo origem em CPIs como a dos Correios, Lula sabe como ninguém como uma investigação parlamentar pode ser desgastante quando o Palácio do Planalto entra na mira da oposição. A dificuldade de frear a Comissão de 8 de janeiro reflete também um dilema que deve se repetir ao longo do seu mandato: em meio a incertezas na base aliada, o cuidado com o Congresso terá de ser permanente.
Por Veja